Levanta-se o homem, pega sua taça de vidro e a garrafa gelada de refrigerante - saboreia-se com o som da água jorrando na taça até a boca - lambe os lábios, delicia-se, e por um instante aquela água parece ter lavado a sua alma, mas, o calor do corpo, o que está no seu sangue, não esconde quem o é de verdade. Logo, o frescor da alma é coberto pelo fervor do veneno - É o que se sente ao deixar escapar o que realmente o faria feliz, não é o arrependimento, mas uma certa potência que surge a partir do que perdemos, muitas vezes incontrolável, de fato, afinal e infelizmente, o homem sempre vislumbra um futuro, mas esquece de que este não é mais do que a romântica ilusão.
A leitura o distraía nas tardes de domingo. Estava relaxado, sozinho e aparentemente sem preocupações - o inverno e o frio pareciam afastar qualquer tipo de sentimento ruim - afinal, como dizem, não há nada melhor do que um dia após o outro. Eis um homem como outro qualquer, sentado em uma cadeira, observando o vazio de seu apartamento, sem vontades, parecia aguardar friamente uma resposta ou, talvez, algo que o salvasse naquela intrigante tarde.
Com as roupas sujas por algo cinzento, o homem se levanta e dirige-se à única parede onde ainda havia um papel de parede com algumas flores, algo que remontava-lhe na memória a imagem de sua infância e, junto à ela, a sensação de ter deixado boa parte de sua vida escapar de suas mãos. Para ele, a vida passara muito rapidamente, tantos detalhes e harmonias perdidos - o colorido havia esvaziado da lembrança. Fora a primeira vez que um sentimento incontrolável tomara conta de si, o homem não era só mais um homem, mas o assassino de sua própria história.
Algo parecia fazer com que o veneno no sangue se rendesse, fazendo com que o homem se jogasse em um abraço contra aquela indecifrável parede. Seu corpo escorrega aos poucos e ele se recolhe no chão, como um bebê ainda no útero de sua mãe - talvez este fora seu único e verdadeiro momento de paz, mesmo que alimentado pelas drogas, de onde nunca deveria ter saído - e a ansiedade, aos poucos, toma conta de seu corpo com movimentos involuntários, não como um soro para o veneno, mas como uma droga potencializadora de um microcosmo de caos em uma mente perturbada. Com o olhar inquieto, no chão, o homem tenta engolir a si mesmo.
Volto, por um momento, à infância daquele homem: Estava sozinho, como de costume, brincava durante horas com os cavalos, os bonequinhos de guerra, podia dormir a tarde toda, até minha mãe voltar e o colocar para estudar, após o jantar, antes da hora dormir.
Enquanto isso, no frio apartamento, inquieto e ainda no chão, o homem repetia: - Estava sozinho? Eu não estava sozinho, se ele veio até mim, eu não estava sozinho! Não, sozinho não, não naquela tarde! Ele veio até mim, perguntou meu nome, me pegou em seu colo, me colocou na cama, me deu algo para beber, branco como o leite e me colocou para dormir. Ainda me lembro, ele tentara me matar!
Naquele exato dia ao qual se refere, não se sabia do que aquela criança estava falando, pois estava vivo, sem nenhuma marca de agressão.
- Padre Anacleto Eliud esteve aqui e tentou me matar, acreditem!
Embora dissesse a verdade, a criança fora ignorada por seus pais que, sem tempo, não puderam averiguar o que ocorrera, pensavam ser somente uma brincadeira de mal-gosto.



